Carla Simón entrega com “Romaria” um filme que habita o limiar entre a autobiografia e o mito familiar — um retrato delicado daquilo que permanece por dizer. A realizadora regressa aos seus temas mais pessoais — perda, identidade, os vazios deixados por pais ausentes — e propõe uma narrativa que é tanto procura como invenção.
A protagonista é Marina, uma jovem de 18 anos órfã desde tenra idade, que se desloca a Vigo no ano de 2004 para obter um documento com vista a candidatar-se a uma bolsa universitária. Lá, conhece pela primeira vez a família paterna que nunca conhecera e enfrenta os silêncios, as culpas e as contradições do passado — da adição à heroína à vergonha social, do estigma do SIDA às memórias que se perdem ou se recontam de maneira diferente.
Estilisticamente, “Romaria” mantém o olhar atento e observacional de Simón, mas com uma ousadia renovada. Não é só realismo puro: aparecem flashbacks, vídeos caseiros, o diário da mãe, e até momentos de fantasia poética que rompem o tempo linear. O filme assume, também, uma estrutura episódica que se enriquece desses fragmentos — fragmentos de memórias, de imagens que faltam, de sentimentos mal resolvidos.
Se há fragilidade no filme, reside menos nas suas ambições do que no dilema que propõe: o de reconstruir o passado com recursos que são necessariamente imperfeitos — memórias fragmentadas, versões contraditórias, desejos idealizados. Simón abraça essa fragilidade e faz dela força narrativa. “Romaria” não força a reconciliação, nem pretende purgar culpas; antes, oferece espaço para que o espectador sinta o desconforto, a ternura e a complexidade de pertencer a uma história que nunca foi linear.
No conjunto, “Romaria” surge como o ponto mais alto até agora da obra de Carla Simón — uma meditação sobre como o silêncio molda famílias, sobre como reconstruímos a nós próprios através das ausências, e sobre a coragem necessária para encarar o que deixámos para trás e aquilo que escolhemos lembrar.